sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Um pouco do Darcy Ribeiro romancista

Aqui estou eu, outra vez, nessa sala do meio da casona, hoje minha, amanhã sua. Menos minha hoje do que ontem. Mais hoje do que amanhã. Um homem que se acaba nessa babação de cavalo é lá dono de nada!
Nem de mim sou dono, nesta vidazinha minha que vai escorrendo e pode estancar agora, daqui a uma semana ou daqui a um ano. Quem sabe? Médicos? Fui ver o doutor Consta e o doutor Mauricinho. Cada um levou meus cobres mas só me deu conselhos, sempre os mesmos. Não fumar. Não beber. Não nada e esperar. Com resguardo o senhor pode viver anos. Remédio que me alivie, nenhum. Só aspirina dessas mais vagabunda e esperar. Esperar, o quê? Esperar o senhor, seu padre? Esperar a morte? Esperar!
Nisto estou, esperando, com ânimo de um cagão, menos por medo do que por cansaço. Medo de morrer, tenho e confesso. Na verdade mais desgosto do que medo. Meu medo mesmo é morrer sem remissão dos meus pecados para ficar feito alma penada, assombrando gentes e bichos pelos ares desses campos que são meus ou que terão sido meus. Mais meus ainda eles não seriam se por eles eu voejasse eternamente vaquejando uma tropa fantasma? Esse fadário não quero seu padre, por isso confesso e peço.
É triste um homem cair neste estado: roído, aguado e espumoso dentro dos peitos; carunchado por fora no ânimo de viver. Os prazeres ruins e bons passaram e o senhor verá que nunca foram tão grandes. Jamais fui homem capaz de gozos maiores. Um cigarrinho de bom fumo cheiroso, em palha macia; um trago de pinga destilada em alambique de barro; comidazinhas como o picadinho de quiabo com angu de Inhá, a cachorra safada; e fodeções, principalmente fodeções.
O melhor da vida são fodeções, seu padre. Tanto as de passagem meio mijadas; como as estiradas, gozosas. O senhor não sabe disto, penso eu. Mas aqui digo ao senhor, de homem a homem, o melhor dos arranjos de Deus foi este de dividir a criação em machos e fêmeas e pôr um ímã em cada um para buscar o outro. Disso entendo. Meu ofício verdadeiro, de minha vida inteira, foi o de muleiro; sou, de arte, acasalador de animais. Até de animais desencontrados como cavalos e jumentas, asnos com égua e suas crias, ditas híbridas e estéreis, mas das quais eu, algumas vezes, colhi crias, os bardãos.
Quando digo que o gozo da fodeção é geral nas criaturas de Deus, digo com tino, de experiência. Digo e repito, seu padre, que isso é verdade não só para os homens e bichos maiores, mas para toda criaturinha vivente, como nunca me cansei de ver. Os cágados são fodedores safadíssimos e o macho é munido de uma peça de fazer inveja. Os caramujos, veja o senhor, esse bichinho á toa, fodem dobrado, pois cada qual sendo macho e fêmea, os dois se fodem e se comem ao mesmo tempo, gozando por demais. Até o escorpião, esse trem asqueroso, mostra gozo fodetório, ainda que o macho perca o pau na fornicação.
Acho, por isso, que se há alguma coisa do gosto de Deus é a fodeção, não só para reproduzir, mas pelo gozo dela mesma. Penso que nem aos padres, o senhor me permita, se devia negar este gozo, que é da vontade de Deus.
Aqui estou eu me desbocando em desrazões que não hão de cair bem ao senhor. Não posso me esquecer de que se escapei das balas de Doía e de tanta outra bala, decerto foi para ter essa oportunidade de confessar e de receber absolvição dos revessos e pecados que levo comigo e de que preciso ser lavado e remido.
Nesta sala do meio dos Laranjos, hoje, quinta-feira de tardezinha, um homem, eu, espera a morte. Não será para hoje, nem para amanhã, eu sinto, mas será. Esta certeza acaba com o resto do gostinho de viver que ainda tenho.

Trecho de O Mulo, de Darcy Ribeiro.

Ilton Candido

Um comentário:

  1. Camarado Ilton.

    Eu li esse livro, e absorvia as páginas, bebia mesmo como água. Depois reli e mesmo relendo lendo relendo ele é muito forte.

    A gente tem escritores bons, e a galera fica lendo pau no coelho.

    Jai

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