terça-feira, 26 de janeiro de 2010

A QUESTÃO NEGRA NO INTERIOR DOS PARTIDOS DE ESQUERDA

Os partidos de esquerda nunca foram um bloco uníssono no que tange à formulação de projetos políticos para romper com a ordem estabelecida e, consequentemente, promover a transformação social. Cada partido apresenta em sua essência organizativa particularidades de uma determinada conjuntura, pois são produtos de suas próprias experiências históricas.
A distinção geral que faço entre esquerda e direita é que são ideologicamente excludentes. Como afirma Norberto Bobbio, nenhuma organização político-partidária pode ser simultaneamente de direita e de esquerda. Por esquerda, entendo serem todos os partidos comprometidos em seus conteúdos programáticos e em suas práticas políticas em subverter a ordem (moral, política, econômica) estabelecida, nas mais variadas conjunturas históricas.

Numa formação social estruturalmente racializada, como a brasileira, os partidos de esquerda perspectivaram as lutas raciais em luta de classes. A partir do momento em que os negros e negras ganharam autonomia política dentro dessas organizações partidárias, ficou cada vez mais evidente uma cobrança por um programa político menos classista e mais étnico, ou, por vezes, classista e étnico. Por não serem monolíticas, as organizações apresentam frações de classe (nunca existiu uma classe coesa em termos absolutos), pois seus membros não só postulam as normas, os princípios e suas resoluções, como também podem postular posições resultantes de suas filiações culturais (étnica, religiosa), de forma que confluem as suas identidades com as organizativas (de classe), apesar desta última, em determinadas situações, tentar, em vão, suprimi-las. Dessa forma, o sujeito da classe nunca foi uniforme e homogêneo, podendo ser negro (a), homossexual, mulher. Na verdade, o sujeito da classe é um ser socialmente complexo e tem suas particularidades de acordo com suas composições políticas e ideológicas.

Uma das fortes características dos partidos de esquerda foi a formulação de projetos reformistas ou revolucionários tendo por base teorias importadas, que, por não terem muita relação com a realidade concreta brasileira, tornaram-se mecanicistas e assimétricas. Para os partidos de esquerda, o abismo social entre negros e brancos, e todo o pensamento social que inferiorizava o negro eram mais um problema social (econômico) do que oriundo das relações de poder, sustentadas pelo racismo.

Na prática, alguns partidos caem numa contradição paradigmática de suas próprias abstrações totalizantes, ao tentarem insistir em compreender a totalidade do social apenas a partir de uma determinada ação política dos sujeitos (governantes). O exemplo mais contundente dessa contradição é o do PSTU – Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados, que, ao mesmo tempo em que tece elogios (mais que necessários) ao presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad, por sua posição em não acatar as decisões da ONU, que tenta impedir o desenvolvimento de um projeto de tecnologia nuclear em seu país, é obrigado a rechaçar algumas outras posições desse mesmo presidente, tais como: que o “holocausto foi um mito”, ou ainda, que “se a homossexualidade se expandir, a humanidade vai deixar de existir”. A um só tempo, o presidente iraniano possui um comportamento político progressista (ao não se render aos auspícios do imperialismo estadunidense), elogiado pelo PSTU, assim como conservador e reacionário, ou seja, apresenta identidades contraditórias.

O que estou querendo argumentar é que não existe um sujeito com uma identidade totalizadora, singular e absoluta. Ao mesmo tempo em que os partidos são compostos por pessoas diversas, não podem apresentar a categoria classe como um amplo guarda-chuva que represente as mais variadas identidades. O que o PSTU faz, na prática, é eleger uma ação política do presidente iraniano condizente com as suas estratégicas mobilizadoras, de forma que se reconheça em sua estrutura discursiva (excessivamente econômica), por vezes secundarizando outras formas de poder socialmente exercidas, como as questões de identidade cultural (a exemplo do discurso homofóbico do presidente).

Os negros e negras do MNU – Movimento Negro Unificado e da UNEGRO – União de Negros pela Igualdade, organizações ligadas umbilicalmente ao PT – Partido dos Trabalhadores e ao PCdoB – Partido Comunista do Brasil, respectivamente, têm posições, interesses e influências diferentes dos brancos do mesmo partido, e, por vezes, apresentam pontos de tensão, ora para registrar as diferenças de posições étnico-políticas, ora para promover rupturas, ao se sentirem agonizados com os discursos totalizantes e universalizantes.

Raça, classe e gênero ainda são uma questão-problema para os partidos políticos mais herméticos e ortodoxos, que ainda privilegiam o campo econômico como centro da luta, e esse conflito torna-se mais evidente nos momentos de luta pela implementação pública de políticas multiculturais de cunho socialista. A persistência na construção de projetos políticos universalizantes, uniformes, centralizados e sem atentar para a pluralidade e a diversidade dos sujeitos só contribui para a manutenção das desigualdades.

Privilegia-se a luta de classes, deixando subjacente a questão racial, enquanto os militantes negros querem fazer entender que a questão racial está para além da exploração do capital. Não se trata de privilegiar a cultura e a identidade em detrimento das questões econômicas, mas de se fazer entender que temos uma sociedade estruturalmente racializada e classista, e que os privilégios de determinados grupos não são apenas de classe, mas também étnicos.

Em termos práticos, esse debate (raça e classe) permanece insolúvel, mas os (as) militantes negros (as) continuam insistindo que a lógica do racismo é cultural e está na base das relações de poder, bem como que a luta de classes vai além das mudanças nas relações de produção.

Eduardo Antonio Estevam Santos – Coordenador do Núcleo de Estudos Afrodescendentes e Indígenas. Mestre em História Social e Doutorando em História pela PUC-SP.

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